Um prêmio literário é cancelado no Brasil. Motivo? A Inteligência Artificial foi usada de forma tão descarada que alguns textos enviados à Editora Kotter continham até comentários da própria ferramenta. Seria cômico se não fosse trágico. Em meio à tentativa desesperada de fazer literatura em velocidade recorde, esqueceram algo fundamental no caminho: cadê o autor? A polêmica decisão da Kotter deixa um ponto claro — estamos no meio de um dilema criativo e ético: que papel damos à tecnologia na criação literária?
Mas o caso brasileiro não é isolado. No Japão, a escritora Rie Kudan causou furor ao admitir que seu romance premiado no respeitado Prêmio Akutagawa teve colaboração direta do ChatGPT. Lá fora, o escândalo ganhou tons filosóficos quando um autor italiano inventou um escritor fictício — criado integralmente por IA — para publicar um ensaio político. Nos Estados Unidos, autoras de romances de fantasia foram desmascaradas pelos leitores ao deixarem “prompts” de IA esquecidos no texto final. A IA, portanto, já cruzou a fronteira entre auxiliar criativo e autor fantasma — e começou a causar estragos.
Esses exemplos revelam que estamos vivendo um momento limítrofe: de um lado, a promessa sedutora da produtividade sem limites; do outro, a urgência da autenticidade e da originalidade literária. Afinal, a escrita é mais do que organizar palavras: é imprimir uma identidade. O texto artificial, impecável em gramática, pode até disfarçar uma voz humana, mas jamais conseguirá simular sua profundidade. A literatura não é uma produção em massa: é um ato artesanal, com cicatrizes e imperfeições.
Olhando para o passado, é inevitável lembrar-se de HAL 9000, do clássico filme "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick. A máquina perfeita, que falhou justamente por não compreender a complexidade emocional dos humanos. Parece que Kubrick já avisava, lá em 1968, que essa ambição da perfeição técnica, se não equilibrada com a intuição e sentimento humano, resultaria no caos. O escritor que abandona sua própria voz e sua própria essência em prol da produtividade robótica pode estar trilhando o mesmo caminho da IA de Kubrick: o erro não está na máquina, mas em delegar-lhe aquilo que nos define como humanos.
Por outro lado, não podemos demonizar totalmente a tecnologia. Ela veio para ficar, para ampliar nossa criatividade, para abrir portas antes impensáveis. Editoras como Penguin Random House já enxergaram o valor de um uso consciente da IA, deixando claro que essa ferramenta pode aprimorar o processo, mas jamais substituí-lo completamente. Surge então o termo-chave: curadoria humana. A IA pode sugerir, mas é o ser humano que lapida, refina, revisa e, fundamentalmente, decide quais sugestões aceitar ou descartar.
Talvez o caminho seja justamente a transparência. A Authors Guild, nos Estados Unidos, criou o selo "Human Authored", certificando obras predominantemente humanas. A verdade é que leitores não gostam de ser enganados. Uma coisa é deixar claro que o livro foi ajudado por IA em questões secundárias, outra bem diferente é enganar o público fingindo autenticidade onde só existe simulação. A inteligência artificial pode até imitar o ritmo, estilo e fluidez da linguagem, mas não alcança o invisível, o não-dito, a potência silenciosa da emoção genuína. O leitor percebe, intui, e acaba rejeitando aquilo que não encontra eco em si mesmo.
A literatura é um espelho. Um texto é sempre reflexo do ser humano que o escreveu, com todas as suas contradições, desejos, angústias e esperanças. Delegar completamente a escrita a uma IA é como abdicar daquilo que faz a literatura ser literatura: humanidade. Por isso, diante do dilema tecnológico que atravessamos, fica claro que não adianta ter inteligência artificial se falta inteligência autoral. A voz, a ideia e a essência literária ainda são — e continuarão sendo — inconfundivelmente humanas. Afinal, cadê o autor? Ele precisa estar, sempre, atrás de cada palavra.