× Capa Meu Diário Textos Áudios Fotos Perfil Livros à Venda Livro de Visitas Contato Links
Eduardo Nagai
O Seu Guia Literário
Textos

BODAS DE JEQUITIBÁ

 

No entardecer dourado de outubro, um clima solene pairava sobre a velha fazenda. Sob a vasta copa de uma jequitibá centenária, moravam as memórias de um amor inabalável. Ali, na varanda de madeira delicadamente esculpida pelos ventos do tempo, reuniam-se filhos, netos e bisnetos de Jeremias e Eulália. Para todos, porém, o que se via era apenas uma alegria contida: um grande salão com fitas coloridas e girassóis amarelos anunciava a rara celebração das bodas de jequitibá — o centenário de casamento daquele casal.

 

O casal, curvado pela idade mas ereto pela dignidade, sentava-se à cabeceira da longa mesa preparada para o banquete. Jeremias, de fisionomia serena, observava os detalhes do ambiente: toalhas de linho branco, talheres alinhados, e um bolo decorado com folhas verdes que aludiam às copas da árvore milenar. Eulália, sempre atenta às tradições, ajeitava o pequeno lenço que trazia no colo. Os dois trocavam olhares cúmplices, carregados de uma cumplicidade antiga e forte.

 

— Olha só, José — sussurrou Eulália à pessoa ao seu lado —, cada uma das velas parece contar um ano de nossas vidas.

José, um neto terno, sorriu e a ajudou a segurar um braço.

— Vocês dois merecem muito mais que estas homenagens.

 

Ele tomou cuidado para não deixar transparecer que o sorriso de seus primos não era tão caloroso quanto o dele. No salão decorado de festa, havia também sombras contidas de mágoas antigas. Um silêncio incômodo se abria entre irmãos distantes, que trocavam cumprimentos breves demais e pronunciavam palavras discretas sob sorrisos forçados. Ainda assim, por enquanto, tudo corria em harmonia aparente. À mesa, desencontrados como folhas ao vento, estavam os netos. Uns brincavam de esconde-esconde atrás das cadeiras, outros compunham coros imaginários. Uma garotinha de tranças longas, bisneta de Jeremias, aproximou-se delicadamente da avó com um cartão colorido nas mãos. — Parabéns, vovó! — exclamou Maria com os olhos brilhantes, oferecendo-lhe o presente.

 

Eulália deixou escapar um sorriso contido: — Obrigada, minha pequena. Que Deus conserve todos vocês felizes e unidos.

Atrás das portas entreabertas do salão, a tarde se despedia. O sol murchava no horizonte, tingindo as nuvens de um tom vermelho-alaranjado. A luz rasante fez o tronco do jequitibá brilhar em sombras douradas. Eulália lembrou-se então de uma outra tarde, muito distante. No instante seguinte, o sussurro de uma música antiga pareceu deslocar o tempo. Eulália voltou-se para longe, e a cena de 1925 se projetou diante de seus olhos como um filme em penumbra. Naquela mesma varanda, vinte anos antes, Jeremias estendia sua mão trêmula para a moça que o esperava. Ela, com sorriso sereno e confiante, era tão jovem.

 

— Eulália, você quer se casar comigo? — ele perguntou, ligeiramente inseguro.

— É claro, Jeremias — respondeu ela, os olhos muito sérios por um instante —. Prometo ser fiel a você enquanto houver sol nas manhãs.

 

Dançaram devagar, quase em silêncio, apenas o ranger das tábuas marcava o ritmo de seus corações. Quando terminaram, Jeremias plantou ao pé do jequitibá uma muda pequenina. — Um jequitibazinho para que cresça junto conosco — disse ele.

 

— Sim, para nós e para nossos filhos. Que suas raízes sejam profundas, como nosso amor — respondeu Eulália, emocionada, enxugando-lhe uma lágrima solitária. Eles se beijaram sob a sombra do jovem jequitibá, sem saber quantos invernos e verões ainda compartilhariam. Eulália voltou ao presente com a visão turva e segurou com força a mão enrugada de Jeremias. Ele percebeu a comoção dela e, sem quebrar o silêncio, sorriu-lhe ternamente. Enquanto José servia suco de laranja com um cuidado religioso, Jeremias deixou que os instantes de paz também o transportassem. As vozes das conversas ao redor se dissolviam para ele, e ele se viu de volta a 1945, numa madrugada fria de inverno. Eulália estava ajoelhada em um leito improvisado; o bebê prematuro que carregava não resistira. Jeremias murmurou quase sem respirar:

 

— Minha flor, o tempo é implacável, mas nada apagará o que vivemos juntos.

Ela abriu os olhos febris e, com voz suave, respondeu: — Já não importa, meu amor. Contigo eu sei que sobrevivo a tudo.

Ele segurou-lhe as mãos geladas: — Você é meu jequitibá, Eulália. Forte, silenciosa, persistente.

Eulália sorriu de leve e sussurrou: — Assim somos nós, Jeremias.

 

No silêncio daquele quarto, enquanto o frio estremecia lá fora, Jeremias soube que haviam sobrevivido à pior das tempestades, unidos como as raízes da grande árvore. De volta ao presente, Jeremias abriu os olhos e viu Eulália ao seu lado. Os olhos dela ainda brilhavam de emoção. Ele estendeu a mão para o ombro dela, como se quisesse dizer sem palavras: estamos juntos.

 

— Queridos — disse Jeremias, levantando-se com ajuda da bengala —, hoje celebramos muito mais do que cem anos de casamento. Celebramos uma vida inteira de histórias: dias de sol radiante e noites de trovoadas. Olhem para aquela árvore — continuou, apontando para o jequitibá lá fora — Ninguém pode arrancar suas raízes; ela cresceu forte, enfrentando tempestades em silêncio. Assim tem sido nosso amor. Fez-se um breve silêncio enquanto os rostos voltavam-se para a janela iluminada pela lua. Jeremias segurou a bengala firme e prosseguiu:

 

— Aprendemos que palavras não são necessárias para mostrar amor; basta permanecer. Vocês, netos e bisnetos, são folhas vivas das nossas raízes. Cultivem este solo com carinho, não deixando nunca que as mágoas resistam em meio a vocês. Um aplauso suave se espalhou entre os convidados, misturando-se a algumas lágrimas contidas.

 

Um dos netos emocionados murmurou: — Vocês são nossa inspiração. Após o brinde, a festa continuou sob as estrelas. Mas já era noite alta quando Eulália e Jeremias se retiraram discretamente para a varanda. Lá fora, só a luz da lua iluminava o tronco adenso do jequitibá. Eles ficaram em silêncio por instantes, sentindo o ar fresco e ouvindo apenas o sussurro das folhas. Finalmente, Eulália tocou a casca áspera do jequitibá e disse suavemente: — Cem anos, meu amor.

Jeremias sorriu ao ouvi-la e encostou a cabeça na mão que a tocava. — Sim, cem anos. Olhe para nós, firmes como essa árvore.

 

Ela aproximou-se, apoiando-se nele, e explicou baixinho: — Sabe, ainda sinto a promessa que fizemos quando plantamos nosso primeiro jequitibá. Cada lágrima, cada riso, nos fez crescer um pouco mais.

— Cumprimos a promessa — murmurou Jeremias. — E ao seu lado, sei que suportarei quantos anos mais Deus permitir. Silenciosos como a sombra do jequitibá, eles permaneceram abraçados naquela noite. As risadas e discórdias que haviam povoado a festa desapareciam na brisa noturna. Só ficaram as raízes profundas de sua história — invisíveis, mas inabaláveis. — Que venham os próximos dias — sussurrou Eulália, erguendo os olhos para a lua —. Que sejamos sempre como este jequitibá: fortes em silêncio e firmes diante das tempestades.

 

Jeremias segurou o rosto dela com carinho. — Para sempre, minha vida — disse ele. E assim terminaram as Bodas de Jequitibá: com amor compartilhado, segredos guardados e o conforto de saber que, sob a copa daquela árvore imensa, a família renovava suas raízes profundas, silenciosas e eternas.

Prof Eduardo Nagai
Enviado por Prof Eduardo Nagai em 02/06/2025
Alterado em 02/06/2025
Comentários
O Crime da Arte R$ 54,81